ENTRELINHAS - Carta silenciosa para Clarice
Isto não é um lamento, é um grito de ave de rapina.
Hoje é um dia de nada.
Existe por acaso um número que não é nada?
Que começa no que nunca começou, porque sempre era?
E era antes de sempre.
Escrevo quase que totalmente liberta do meu corpo.
Meu espírito está vazio por causa de tanta felicidade.
A sombra da minha alma é o meu corpo, o corpo é a sombra da minha alma.
Estou tendo uma liberdade íntima que só se compara a um cavalgar sem destino pelos campos afora.
Será o meu destino alcançar a liberdade.
O que me importa são instantâneos fotográficos das sensações.
A solidão é esta, a do deserto. O vento como companhia.
Eu gosto do que não entendo.
Como é bom mexer nas coisas deste mundo: nas folhas secas, no polém das coisas ( a poeira é filha das coisas).
Meu cotidiano é muito colorido.
Estou sendo profundamente feliz.
Cada palavra é sangue, é coração retalhado, é lava de vulcão escorrendo pela montanha abaixo.
Quero a mistura colorida confusa misteriosa da natureza.
Vivo porque nasci.
Viver é mágico e inteiramente inexplicável.
Em cada palavra pulsa um coração.
É uma viagem de olhos vendados em mares nunca percorridos.
São a inspiração.
Inspiração não é loucura.
É Deus.
Será que Deus sabe que existe.
Deus é tempo.
O tempo passa depressa demais e a vida é tão curta.
A vida real é um sonho.
O que me atormenta é que tudo é, nada é "sempre".
E amanhã eu vou ter de novo um hoje.
Quero viver muitos minutos num só minuto.
Quero hiatos de paz.
Maria Angélica
Interferência do livro "O sopro de vida" Clarice Lispector.