30.6.11

ENTRELINHAS - Carta silenciosa para Clarice

Isto não é um lamento, é um grito de ave de rapina.
Hoje é um dia de nada.
Existe por acaso um número que não é nada?
Que começa no que nunca começou, porque sempre era?
E era antes de sempre.
Escrevo quase que totalmente liberta do meu corpo.
Meu espírito está vazio por causa de tanta felicidade.
A sombra da minha alma é o meu corpo, o corpo é a sombra da minha alma.
Estou tendo uma liberdade íntima que só se compara a um cavalgar sem destino pelos campos afora.
Será o meu destino alcançar a liberdade.
O que me importa são instantâneos fotográficos das sensações.
A solidão é esta, a do deserto. O vento como companhia.
Eu gosto do que não entendo.
Como é bom mexer nas coisas deste mundo: nas folhas secas, no polém das coisas ( a poeira é filha das coisas).
Meu cotidiano é muito colorido.
Estou sendo profundamente feliz.
Cada palavra é sangue, é coração retalhado, é lava de vulcão escorrendo pela montanha abaixo.
Quero a mistura colorida confusa misteriosa da natureza.
Vivo porque nasci.
Viver é mágico e inteiramente inexplicável.
Em cada palavra pulsa um coração.
É uma viagem de olhos vendados em mares nunca percorridos.
São a inspiração.
Inspiração não é loucura.
É Deus.
Será que Deus sabe que existe.
Deus é tempo.
O tempo passa depressa demais e a vida é tão curta.
A vida real é um sonho.
O que me atormenta é que tudo é, nada é "sempre".
E amanhã eu vou ter de novo um hoje.
Quero viver muitos minutos num só minuto.
Quero hiatos de paz.

Maria Angélica
Interferência do livro "O sopro de vida" Clarice Lispector.

Mulheres Emparedadas - Bienal do Recôncavo - 2008

Mulheres Emparedadas é nesse projeto entendido e representado poeticamente através da imagem do inconsciente coletivo feminino, revelando a essência feminina que permaneceu reprimida durante séculos.
Aprisionadas em vãos de muros altos, mulheres encarceradas. Presas e escondidas por seus donos, perderam-se na memória do tempo. Restam apenas vazios e enigmas, nas entranhas do medo e do sofrimento. Seu interior é sufocante.
Ouço gritos de dor ecoados de seus corações, clamando por liberdade. Ouço o silêncio opressivo das almas enclausuradas, escodendo segredos e crimes nunca cometidos. Emoções contidas e suspensas no ar sombrio das noites escuras e frias, que se seguem no tempo no centro dessas mulharas de pedras.


Objetivo:
Ter conciência de sua existência ao se deparar com o emparedamento do seu ser.

Proposta:
Mulheres
Subir uma pequena escada e se olhar dentro de quatro paredes, ver o seu ser emparedado, pela sociedade, pela família, pelo trabalho, etc.
Tomar consciência do que tem feito com a sua alma nesta existência. Quebrar os grilhões que lhe acorrentam, que lhe foram impostos por uma ditadura patriarcal, regida pelo princípio da ordem, do dever e do desafio de tarefas.

Homens
Subir a mesma escada e se olhar dentro de quatro paredes. Ver suas mulheres: mães, avós, tias, esposas, amantes, filhas, amigas e os emparedamentos causados pela ditadura, agressão, opressão, silêncio, desprezo, abandono, amores, crueldade e egocentrismo.
Tomar conciência da sua responsabilidade sobre a alma feminina e libertá-las.

29.6.11

Instalação de tijolos com cimento

Instalação de tijolos com cimento

Memórias de uma Manta







Era uma vez uma manta de flanela colorida com indiozinhos, cavalos e cenas de faroeste.
Era o colo da mãe que nos acalentava para dormir nas noites frias de inverno, e brincava de esconde esconde nos dias quentes de verão. Ela não era uma manta qualquer, ela tinha alma que acolhia a mim e a todos que passaram nesta aldeia.
Uma manta encantada, mágica para todos nós que tivemos a possibilidade de conhecê-la.
Duas, cinco, oito ou mais pessoas, dormindo juntinhos num edredom no chão imaginando historias que estes indiozinhos e cavalos viviam ou poderiam viver. Tudo era alegria e brincadeira, um verdadeiro clã.
Passávamos as noites conversando, cantando, sorrindo, chorando, celebrando a vida e o amor sempre. Ouvíamos Pink Floyd, Vangelis, Enigma e muitos outros.
Quanta vida! Quanta alegria! Quanta história!
De índios, reis, animais, seres invisíveis e nossas.
Todos eram irmãos de alma, de idéias e de coração.
Havia até promessas e juras de amor. Amores começaram e acabaram debaixo desta manta.
Ela ouvia nossos corações, sonhos e dores. Sorria de alegria quando o amor tocava nossa alma e nos acolhia e enxugava nossas lágrimas quando alguém partia e nos deixava sós.
Todos cresceram e partiram para bem longe e ela também se foi junto com outro alguém.
Fiquei só. Com frio, com sede, sem histórias, sem colo, sem alegria, sem nada.
Vazia, oca por dentro.
Procurei nas estradas da vida e do tempo, algo que me fizesse sorrir de novo.
Período longo e difícil.
Na vida, a roda do tempo gira, um dia encontrei-a guardada, intacta, dobrada, desbotada, mofada, sem vida, num fundo de uma fria prateleira de tijolos.
Estava esquecida, só e triste como eu.
Foi uma grande surpresa, coloquei no colo e choramos juntas de felicidade.
Dei-lhe um banho com ramos de alecrim e coloquei-a para secar ao vento e ao sol.
Ficou brilhante e macia de prazer e alegria.
Fizemos então um pacto.
Hoje, caminhamos juntas pelo mundo a fora, ela nos ombros, sentimos que todos partiram, mais estamos juntas pelo amor e pela vida. Minhas memórias me fizeram gente, anjo, mulher ou qualquer outra coisa. Viajamos pelos rios, mares, ruas e esquinas, conhecendo as loucuras dos dias e os perigos da noite, as labaredas das fogueiras e os sussurros do vento. Lá vamos nós...

Manta de índiozinho.

Ao caminhar com a manta nos ombros,
percebi que em todos estes anos,
sentia um enorme vazio.
Meus filhos cresceram e estão por aí.
As tintas e pincéis ocuparam seu lugar.
Estou inteira de novo.
Encontrei nova possibilidade de amar.

A ARTE.

Águas do Mar - Video Arte praia de Massarandupió

"O mar, a mais ininteligível das existências não humanas. E aqui está a mulher, de pé na praia, o mais ininteligível dos seres vivos. Como o ser humano fez um dia uma pergunta sobre si mesmo, tornou-se o mais ininteligível dos seres vivos. Ela e o mar. Só poderia haver um encontro de seus mistérios se um se entregasse ao outro: a entrega de dois mundos incognoscíveis feita com a confiança com que se entregariam duas compreensões".
Clarice Lispector



28.6.11

Fosseis - Costelas, Coluna, Caranguejo







Minhas pinturas retratam a força do tempo sobre animais e pessoas levando a decomposição. O morrer e o nascer estão visíveis em toda a minha arte, mostrando o quanto os seres orgânicos são perecíveis e sua facilidade de recomposição celular. A beleza das cores terrosas são as cores da minha paleta.
Morrer para nascer.